A festa acabara e um novo dia surgiu. O sol raiou sobre as distantes montanhas pedregosas nevadas ao leste, iluminando de uma só vez todo o reino com sua luz.
Os campos amanheceram verdejantes, mais do que o normal, e sobre esse campo as primeiras flores começaram a desabrochar. Já nos bosques as primeiras árvores frutíferas começaram a florescer e as abelhas amarelas começaram a zunir por todos os lados, dividindo o espaço com os belos e delicados beija-flores que pairavam sobre as flores das macieiras cobertas por orvalho.
Os camponeses começavam a encher as estradas da região com uma frenética ida e vinda de Port-Aux e de Wellsexnstein, vinham desses destinos com inúmeras coisas, destas bugigangas a alimentos mais sofisticados. E eram tantos que passavam na estrada de charretes que ninguém percebeu um velho senhor que se dirigia ao Entorno.
Harvy já estava acordado desde bem cedo e naquele instante, estava sozinho em casa. Mais precisamente no estábulo; estava a limpá-lo. Esse era uma das tarefas que Harvy menos gostava, pois ninguém merece limpar esterco com os sapatos na lama.
As vacas já estavam ordenhadas e se encontravam num pasto distante, próximo ao Templo. Havia um grande jarro de metal do lado de fora à espera do menino. Os seus braços já começavam a doer e a cada vez que virava a pá dentro de um grande saco de pano sentia leves dores nos músculos.
Minutos depois, quando já havia acabado o serviço, pegou a jarra e voltou com ela para casa. Seus pais não estavam lá, pois haviam ido até a casa dos Devinares tratar de negócios.
O tédio começava a tomar conta de Harvy. Aquela era uma típica manhã onde não se havia nada a fazer. Subiu a escada e deitou-se em sua cama e lá ficou pensando no que Boreimdall havia tido na noite da festa. Por que será que aqueles seres estavam a andar às soltas pelo reino? Será que os rebeldes iriam resistir por mais tempo? Essas eram algumas de suas perguntas. As respostas não eram nada animadoras; a idéia de ver Boreimdall partir também não o animou.
Minutos depois ouviu uma algazarra vinda do térreo. Curioso saltou da rústica cama e desceu a escada. Sorrateiramente deslizou a cabeça pelo corredor e viu Alberich e Friya adentrarem a casa seguido de um velho de cabelo e barba brancos, vestindo uma túnica cinza e portando uma longa e fina vara.
“Quem será?”, pensou ao ver a figura. Sorrateiro desceu.
— Entre, entre. Fique à vontade. – falou Alberich com um largo sorriso que logo sumiu ao ver Harvy no começo da escada.
— Quem é o garoto? – perguntou o velho com um olhar solene. Seus olhos encontraram os de Harvy que logo procurou desviar o olhar ao sentir um estranho arrepio.
Alberich franziu a testa à pergunta, como se pensasse que o convidado já soubesse quem era o menino, mas mesmo assim respondeu:
— É Harvy, nosso filho. Harvy este é Ranuran, o Lorde. Amigo nosso de longa data; vai passar alguns dias aqui conosco. Visto que sua casa foi ocupada por cupins. – enquanto Alberich falava Harvy mantinha seus olhos nas pontas enlamaçadas do sapato e nada dizia. Embora nada dissesse ficava imaginando o porquê aquele velho tinha um codinome de “Lorde”, já que não se parecia muito com um.
— ‘dia Harvy. Ele é bem grande, não? – perguntou se dirigindo à Friya que respondeu.
— Sim, dezessete anos. Venha, venha, sente-se aqui; irei preparar um chá e... – sua voz foi se perdendo enquanto conduzia o convidado cozinha a dentro.
Alberich ficou encarando Harvy que lentamente subiu de volta a seu quarto.
*
A manhã se findou em densas nuvens cinzas que trouxeram uma grossa cortina de chuva; era impossível reconhecer aquele começo de tarde com o começo da manha, mas nada mudou para Harvy, pois ainda se encontrava em tédio em sua cama.
Ainda era possível ouvir a conversa dos três abaixo, que parecia estar bastante animada, pois gargalhadas soavam constantemente. Harvy não sentia vontade em participar da algazarra. Tudo parecia ir de mal a pior para Harvy que lentamente ia se afundando em tédio, quando ouviu uma voz distante chamar pelo seu nome. De inicio a voz não parecia real, mas depois se tornou quando Friya surgiu por uma fresta da porta dizendo:
— Harvy, Rol está te chamando.
Ela não precisou repetir isso mais vezes, pois Harvy rapidamente sumiu dizendo um breve: “já volto.”. Ao passar pela cozinha viu de relance Alberich sentado ao lado de Ranuran, onde conversavam com olhares tensos. O que conversavam Harvy não pode ouvir.
Do lado de fora, junto a uma arvore encontrava-se Roland. Vestia a típica roupa de camponês e segurava em seus braços um livro muito grosso.
— Espero não ter estragado muito coisa. – desculpou-se Rol.
— Não foi nada. Então? O que quer?
— Você quer ir comigo até a casa de Wendrix? Assim você pode ver uma aula.
— Claro. – respondeu imediatamente – Qualquer lugar é melhor que ficar aqui.
Ninguém falou nada até já estarem na estradinha; quando atingiram a bifurcação foi que Harvy perguntou parando defronte a placa de madeira:
— Pra que lado vamos?
— Sentido Port-Aux. – respondeu-lhe Rol já indo à frente.
— Quem é o velho que está na sua casa Harvy?
— Na verdade eu não o conheço. É um amigo do meu pai, apenas. — até aquele instante não dera muita importância para o convidado, a não ser pelo jeito excêntrico de suas vestes.
A chuva que caíra a pouco, acabou por dificultar um pouco o percurso, pois deixara a estradinha barrenta e os meninos agora andavam com cuidado para não afundar seus pés nas grandes poças de lama que o cercavam por todo o caminho.
Harvy olhava curioso, pois não se lembrava de ter passado por aquele percurso. Ali a estradinha era ladeada por bosques, de ambos os lados e somente em alguns pontos era possível avistar as colinas que se estendiam por trás do bosque. E sobre suas cabeças as grossas nuvens cinzas se moviam para o norte fazendo parecer que se uniam com as colinas de cor cinza, distantes; uma brisa gélida sacudia de leve a copa das arvores, derrubando as ultimas gotas restantes da chuva.
— Será que Boreimdall falava serio quando disse que partiria para junto dos rebeldes? – perguntou Rol num tom desacreditado.
Antes de responder Harvy deve que saltar sobre uma grande poça; assim que seus pés tocaram o chão, disse:
— É provável que sim. Repito o que eu havia dito: acho certa a iniciativa dele.
— Embora seja perigoso.
Enfim chegaram a um ponto onde a estrada descia a encosta. Aquela era uma das paisagens mais belas que Harvy já vira. Não havia mais fazendas naquele ponto e somente era possível avistar moinhos a uma distancia considerável. Agora não havia mais bosques ladeando a estradinha; esta se achava em campo aberto cercado apenas por colinas verdejantes.
— Chegamos! – exclamou Rol apontando para uma torre mediana no cume de uma colina afastada da estrada.
Harvy seguia logo atrás de Rol. Seus olhos analisavam atentamente a torre do que seria a casa do feiticeiro Wendrix.
A torre era toda de pedra, comprida e cinza, com musgo nas brechas das pedras. Onde deveria haver ameias, havia um telhado vermelho com uma janelinha redonda. Em seu comprimento havia mais algumas janelas que eram mais parecidas com finas fendas. Já na base, Harvy pode notar que a torre era sustentada por algumas estacas grossas de madeira; ligando o chão à porta oval, de cor vermelha já desbotada, havia uma curta escada de ferro com poucos degraus.
Rol subiu na escada de ferro que dava acesso à porta e bateu.
Toc, toc, toc. Decorrido um tempo a porta se abriu de uma forma pesada.
Um homem bastante velho colocou a cabeça pela fresta aberta. Era careca e seus olhos pretos saltaram ao ver Harvy. Seu nariz era horrivelmente longo – porém não anormal – não possuía sobrancelhas e em seu queixo era pontudo. Aquilo não era uma feição de mago, segundo Harvy.
— Ah... Roland, quem é este menino? – perguntou Wendrix com uma voz fina ainda só com a cabeça do lado de fora.
— Ele é Harvy Cepiscky. O amigo de quem falei.
Wendrix franziu a testa, tentando se recordar, até que disse num tom aliviado:
— Ah, o desocupado. — Harvy lançou um olhar sorrateiro para Rol, que fingiu não ver. Wendrix abriu totalmente a porta e completou no instante em que uma brisa os atingia. – Entrem, entrem.
Rol entrou primeiro e Harvy ao passar pela porta sentiu um arrepio; com um olhar rápido notou um símbolo no topo da porta: um olho dentro de um circulo.
Um cheiro doce enjoativo foi a primeira coisa que Harvy notou a pisar dentro da casa do mago. Esse cheiro envolveu suas narinas e em seguida sua cabeça; sentiu uma leve tontura e depois voltou a si.
Estava num cômodo redondo, incrivelmente apertado e bagunçado; no lado oposto a entrada, se achava um grande caldeirão, sobre uma mesa de pedra e ao lado de grandes tubos de ensaio que continham um liquido vermelho em tom escuro. O caldeirão de cobre borbulhava em cor verdes e emitia uma fumaça aveludada que subia em espirais perfeitas na direção do teto cinza onde se dissipava. O lugar tinha três estantes juntas às paredes com vários tamanhos de livros; no centro havia uma grande mesa circular de madeira, sem cadeiras. No teto havia um grande lustre de ferro, com velas acessas presas às pontas. Nas paredes não haviam quadros ou qualquer outra decoração; eram nuas e nenhum carpete existia debaixo de seus pés, somente um duro chão empoeirado de pedra. Do lado direito, de onde borbulhava o caldeirão se achava outra porta quadrada que ligava aquele com outros andares da torre. E no chão, em toda parte, se encontravam pergaminhos espalhados e garrafas vazias de vidro que somente davam a aumentar a sensação de bagunça. Havia um esqueleto pendurado junto à grande fenda que era a janela e por ela transpassava a luz sombria do sol, que parecia evitar aquele lugar.
Harvy olhava admirado a cada detalhe; seu olhar foi caindo do teto até pausar novamente em Wendrix e reparar que ele vestia uma longa veste roxa. Por algum motivo Harvy não sentira medo; com certeza pensaria que Wendrix fosse uma farsa, se não vise sua casa. Tentou disfarçar um sorriso e como não conseguiu fingiu afastar os cabelos da testa.
— Encantado com minha humilde casa? — perguntou o feiticeiro com o rosto bem proximo ao de Harvy. — Ela causa esse efeito nos mais... fracos. — e deu um sorriso amarelo.
— Vim devolver o livro. – falou Rol que como já estava familiarizado com o ambiente não olhava admirado para nada.
Ao fundo Wendrix fez a porta fechar com um estridente barulho. O único som ali era o borbulhar do caldeirão.
— Ótimo, espero que tenha entendido o que propus. – falou Wendrix que agora ajeitava em sua careca um chapéu pontudo roxo.
O feiticeiro foi até uma estante e pegou algo que Harvy não pode identificar. Virou-se para os garotos e perguntou lançando um olhar para Harvy:
— Você acredita em magia, garoto?
O menino havia sido pego de surpresa; nunca pensara nesse assunto e também não via Wendrix e suas lições à Rol como algo mágico de verdade, via apenas truques. Embora o ambiente fosse bastante convencedor respondeu.
— Acho que não.
Wendrix riu. Então começou a lançar sobre a mesa circular, as cartas de um baralho; após espalhar todas olhou para Harvy novamente e perguntou:
— Gostaria de tentar a sorte?
Olhou para Roland que deu de ombros como quem diz: tente.
— Vamos lá então. – respondeu Harvy totalmente desacreditado naquela coisa ridícula que estava prestes a fazer. Aproximou-se da mesa e olhou calma e atentamente para cada carta ali posta com a parte do desenho para baixo.
— Vamos escolha uma. – falou-lhe Wendrix com um tom estranho de voz. – cada carta representará coisas distintas, na formação final. Então dessa forma poderei dizer algo sobre o seu futuro próximo.
— Eu não acredito nessas coisas. – respondeu desacreditado e com certo receio em prosseguir.
— Então o que lhe custará tentar? Tem medo? – o feiticeiro olhava de forma penetrante e o sorriso amarelo que apresentou não melhorou nada.
— Tudo bem.
Foi se aproximando até ficar praticamente sobre as cartas. Olhava as estranhas letras que estavam escritas na superfície branca do objeto e sentia uma estranha pressão. A sensação se assemelhava como se estivesse dentro d’agua; era confortável ali, embora preocupante. Sentiu-se um pouco tonto e foi despertado ao ouvir a voz de Wendrix que repetia a pergunta.
Novamente olhou para as cartas, concentrado; estendeu a mão para uma delas e então sentiu sua mão, involuntariamente, repousar e puxar uma carta. “Incrível!”, pensou. A estranha energia que o fizera se sentir dentro d’agua havia escolhido a carta.
Levantou-a a altura dos olhos e entregou para Wendrix que falou:
— A magia escolhe a carta do seu destino, filho. Vejamos.... Oh, a ancora. – e apresentou a carta à Harvy. A superfície branca da carta agora tinha o desenho bem feito, por sinal, de uma bela e velha ancora que estava entre o céu cheio de nuvens ladeado por um sol e uma lua minguante e o mar agitado. – Pegue outra.
Novamente Harvy procedeu da mesma forma. Involuntariamente sua mão repousou e puxou uma, duas vezes mais. Vez por vez levantou e entregou-as para o feiticeiro que disse:
— Trindade. Perfeito, perfeito. Vejamos... A ancora... A espada – essa carta era representada por uma única espada sendo segurada por um braço de um guerreiro. —... e a morte. – essa ultima carta deixou Harvy com um mal pressagio. Não sabia se devia interpretar aquela da forma que era apresentada.
No inicio de tudo não dera importância aquilo, que julgou ser uma idiotice, mas agora começava a se preocupar com aquilo.
— E o que significa? — perguntou ancioso.
Wendrix baixou a cabeça, fez uma pausa e recitou:
— “Sua jornada acaba e uma nova jornada começa. Os ventos antigos irão novamente balançar as arvores e os pássaros irão voar para a nova montanha.”
— É o que dizem... Uma nova fase ira começar. – Harvy ficou parado, em êxtase, não compreendia muito bem os dizeres da frase. “Como assim? Nova jornada?”, pensou. Não se via numa vida diferente daquela que já levava de forma branda. – Algo irá despertar isso... Lembranças passadas, talvez.
— Impossível! Não tenho nada de errado ou mal-feito no meu passado. – contou Harvy, que estava relutando a aceitar a situação. Afinal, não acreditava em magia.
— Então não há o que temer. — falou a voz rouca de Roland, atrás de Harvy.
— Vamos Rol? – perguntou Harvy encarando o feiticeiro que agora recolhia as cartas da mesa. Harvy ainda se sentia intrigado com o havia acontecido.
— Garoto as cartas nunca mentem.
— Adeus Wendrix, precisamos ir agora.
Roland se precipitou a abrir a porta e ficou aguardando Harvy que as passou o mais rápido que pode.
Já de volta para casa, enquanto caminhavam a passos curtos debaixo de uma fina garoa Harvy pensava furtivamente sobre a nova jornada. Não compreendia, embora tentasse ligar o fato com todos os acontecimentos ocorridos.
— Será que tem algo a ver com Boreimdall? — perguntou Roland timidamente — Vai ver, ele irá te chamar para ir junto.
Até aquele instante Harvy não havia pensado naquilo.
— Rol. — perguntou Harvy parando no meio da enlamaçada estrada. Sobre suas cabeças as nuvens passavam um tanto baixas despejando mais agua sobre o Entorno. — Será mesmo que Boreimdall quer que eu vá com ele? Será que foi por esse motivo que ele nos chamou para aquela conversa?
Ambos os garotos estavam parados no meio da estrada já a alguma distancia da casa de Wendrix. A garoa aumentou de intensidade e virou um leve chuva que começava a banha-los.
O corpo de Harvy já estava todo molhado e seus cabelos já se achatavam contra a testa fazendo pingar por todo rosto. Roland estava na mesma situação e por esse motivo, ambos não se precipitaram a voltar para casa.
— É provavel. Afinal, faz sentido não? — perguntou o amigo. — Essa seria sua nova jornada.
— Não! Se realmente for isso, então derei que dizer “não” à Boreimdall. Não vou me arriscar por aí.
Prosseguiram na caminhada. Como estavam em campo aberto o vento os atingia com mais intensidade o que fazia aumentar a sensação de frio.
— Concordo com você. – respondeu Rol melancolicamente.
Houve uma pausa, tempo que gastaram para chegar na bifurcação, na entrada das fazendas.
— Rol. — chamou a voz de Harvy.
— Sim? – respondeu a de Rol
— Você acha que eu devo, realmente, crer nessa coisa?
— Não sei, Harvy... não sei.